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HUMAITÁ 150 ANOS


Humaitá 150 anos

Mauro Cherobim
15/05/2019

A Amazônia faz parte da minha vida desde antes de meu avô materno conhecer a minha avó. Ele fez parte de uma tropa de Exército que se dirigia ao Acre na questão do Brasil com a Bolívia. Mas o contingente que ele fazia parte retornou da confluência do Purus com o Solimões ao Rio de Janeiro em face de ser atacado pelo beribéri. As histórias que o meu avô contava prendiam a minha atenção. Em 1959 recebi as divisas de terceiro sargento radiotelegrafista de terra da Força Aérea e fui designado para trabalhar na estação de comunicações de Goiânia e em seguida para a Estação de Xavantina, agora Nova Xavantina, em Mato Grosso, onde passei o ano de 1960. Estava na rota do Correio Aéreo Nacional (CAN) que fazia a linha Galeão-Santarém. Pelo menos uma vez por mês ia a Santarém fazer compras, quando conheci o Xingu, Cachimbo, Jacareacanga e Santarém. Nesta época a Força Aérea era responsável pela “Rota Rio-Manaus” e a estação de comunicações de Xavantina era uma das estações de apoio à navegação aérea desta Rota. Nesta estação trabalhavam dois sargentos, um cabo e um funcionário civil.

Xavantina foi a sede da primeira etapa da Expedição Roncador-Xingu que partiu de Aragarças, margem, direita do rio Araguaia, vizinha de Barra do Garça, à margem direita do rio. Em Xavantina viviam muitos antigos expedicionários da expedição amigos de um primo do meu avô, Coronel Serôa da Motta, membro de Estado Maior da Expedição, com os quais fiz amizade. O nome oficial de Xavantina era CAMJA-Centro de Atração Ministro João Alberto. Foi quando conheci os irmãos Villas Boas. E foi esta minha estada em Xavantina que me orientou para a Antropologia.

No final de 1960 fui removido para Curitiba e encontrei o recém-lançado livro de Manoel Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do Diabo, cuja leitura fez a minha atenção e interesse voltarem-se para a região do Madeira. Li Ferreira de Castro e a minha atenção ficou no Seringal Paraíso. A partir de Curitiba comecei a fazer os meus estudos universitários em direção à Antropologia para tornar realidade aquele meu desejo que surgiu em Xavantina.

Eu me formei pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e em seguida ingressei no Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. Quando no Pós foi-me oferecida a oportunidade de ingressar na docência em cursos superiores. Ao mesmo tempo fui incentivado a estudar os grupos de índios guarani do litoral paulista. Ao mesmo tempo comecei a tomar contato com os autores Amazônia, como Arthur Reis, Djalma Batista, Leandro Tocantins, Samuel Benchimol, dentre outros. Este último me enviou o seu livro Amazônia: Um Pouco-Antes e Além-Depois, autografado.

Em 1971 um grupo de instituições de ensino superior da região de Bauru se tornou responsável pela instalação de um Campus Avançado em Humaitá  e precisavam indicar um diretor para a sua implantação e determinaram que o perfil deste candidato ser de alguém que tivesse experiência de pesquisa de campo e fosse, de preferência, um antropólogo. Eu era o único nesta região que tinha este perfil. Fui convidado e aceitei.

Troquei a Força Aérea por este trabalho. Um trabalho, de apenas um ano, mas que me deu muita satisfação. Cheguei em Humaitá, como se diz, com a cara e a coragem. Não me disseram o que seria integrar um Campus Avançado e nem o que seria um Campus Avançado. Qual seria a sua estrutura. Também não me disseram qual seria o seu papel no grande projeto de desenvolvimento da Amazônia. E o que era a cidade de Humaitá. Tive que descobrir o que era Humaitá. E foi Humaitá que me deu a ideia do que era professor no seu sentido mais amplo.

Um dia, eu acho que foi no mês de março (de 1973), fui surpreendido com o desembarque de máquinas e caminhões, trazidos por balsas gigantes, que fez lembrar o desembarque dos aliados na Normandia. Foi o desembarque da empresa construtora para montar o seu acampamento com cerca de 1800 trabalhadores. Esta era, mais ou menos, a população da cidade de Humaitá, segundo o seu Guimarães, o agente do IBGE na cidade. Numa manhã a sua população dobrou.

Começaram as visitas de caravanas de alunos de escolas superiores do Exército e comecei a ouvir de muitas pessoas que ali se processava uma operação de guerra. Salu[1] viu-se cerceado nas suas atividades de como prefeito para não se chocar com as determinações “que vinham de cima”, ou seja, governo federal.

O diretor o Campus Avançado morava na casa destinada ao Coletor Estadual, cedida pelo Governo Estadual (desculpe-me a redundância) perto da escadaria do (antigo) porto fluvial. E era ali que se reuniam as pessoas para um bate-papo matinal, ainda no escuro da madrugada que segundo Salu era a DIVA (Departamento de Investigação da Vida Alheia). A convite de Salu eu me tornei participante deste grupo de conversa. Imaginei que este nome era exclusividade local, após a minha volta a São Paulo li um artigo de Alceu Maynard Araújo, um dos três ilustres folclorólogos paulistanos, meu professor da graduação e posteriormente meu colega numa faculdade. Fala da DIVA numa pena cidade de Alagoas onde ele fez pesquisas. E eu me tornei um membro dos bate-papos das 15 horas no gabinete de Salu na Prefeitura.

Salu me tornou um Humaitaense. A minha cidade depois de Morretes. E “esmiunçar” a cidade. E conhecer a sua história.

“...foi à uma hora da noite, a noite densa, quente e húmida de 28 de outubro de 1914, que parti do seringal onde decorre este livro, lá longe, nas margens escalavradas do madeira, que nenhuma estrela, então, alumiava”, escreveu Ferreira de Castro, e na DIVA víamos o Sol alumiar mais um  dia humaitaense.

E víamos Humaitá mudar. E teve um papel importante durante o processo de desenvolvimento da Amazônia. Os governos do chamado “regime militar” tinham como objetivo desenvolvimento econômico do país e a Amazônia tinha papel importante neste processo. Ela se tornou o entroncamento de duas rodovias (em construção, naquele momento) a Transamazônica e a Porto Velho-Manaus. Este foi o segundo momento de crescimento de Humaitá, que falarei a seguir. O primeiro foi o do chamado ciclo da borracha (1869-1912). O segundo resultado da Operação Amazônia, estratégia específica para a "integração" da Amazônia Ocidental - a implantação da Zona Franca de Manaus, em 1965 e a integração da Amazônia ao contexto nacional.

Mas voltemos ao primeiro momento.

O Comendador Monteiro, considerado o fundador de Humaitá era um empreendedor (usando o termo atual). Tirando o conceito pejorativo, era um “coronel de barranco”, ligado as novidades das modernidades de então.

A data de fundação de Humaitá é 15 de maio de 1869 e pelas contas que fiz, o primeiro número do jornal Humaytaense circulou em 13 de setembro de 1891, 12 anos após a data de fundação da cidade. Este jornal circulou até logo após 1915. E por um pequeno período circulou um segundo jornal, o Madeirense.[2] A leitura destes jornais é interessante. Descreve a vida cultural de Humaitá nas duas décadas finais do século XIX das duas primeiras décadas do século XX. Havia várias pessoas detentoras de patentes dos Voluntários da Pátria e a mais alta era de Tenente Coronel, possivelmente para não se igualar ao título de Comentador. Havia escola de música além das escolas normais. Noticiava a realização de contatas. Ali estão “reclames” e notícias econômicas. Tem-se razão dar a Humaitá o título de fonte cultural do Amazonas.

Hoje Humaitá tem uma população aproximada de 54000 habitantes, 30 vezes maior de quando cheguei na cidade.

Por fim, a minha tese de doutorado, apresentada em 1991, na Universidade de São Paulo, tem como título A Amazônia e a Política Governamental de Modernização (Humaitá – década de 1970). Estou reescrevendo para publicar.




[1] Salu Cruz, prefeito de Humaitá e meu saudoso amigo Francisco Correa Cruz.
[2] O que restou destes jornais estava jogado num armário, corroído pelo tempo. Em uma viagem que fiz a Humaitá o Prefeito Salu me emprestou estes jornais para ver o que poderia fazer com eles. Consegui juntar os pedaços e tirar uma cópia xerográfica. Na década de oitenta remeti de volta para a Prefeitura e soube, posteriormente que o Prefeito havia doado os jornais para a Secretaria Estadual de Cultura.

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